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MATERNIDADE EM TEMPOS DE ISOLAMENTO SOCIAL

Data de publicação  18/08/2020, 20:47
Postagem Atualizada há 4 anos
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Mãe com filha olhando frases de um móbile.
Título: Maternidade em dias de quarentena.

´Técnica: Fotografia. Ano: 2020.
Concepção/ Autoria: Alda Alves e Artur Alves.

Atravessando a quarentena com arte.
Palavras/recados dispostas em móbile de fitas.
Título: #Fique em casa!” #Vidas importam!

Técnica: Fotografia Ano: 2020.
Autoria: Alda Alves


Móbile de Fitas pendurado na janela com palavras/recado.
Título: Amanhecer, Respirar, Viver, Agradecer.

Técnica: Fotografia Ano: 2020
Autoria: Alda Alves


Móbile de fitas de cetim com palavras/recado.
´Título: Lute como uma mãe!

Técnica: Fotografia. Ano 2020.
Autoria: Alda Alves


Móbile de Fitas com palavras/recado.
Título: Lute como um pai!

Técnica: Fotografia. Ano: 2020
Autoria: Alda Alves




MATERNIDADE EM TEMPOS DE ISOLAMENTO SOCIAL

Michely Peres de Andrade[1]

                                                                                       Maria Alda de Sousa Alves[2]

                                                                                        

Isolamento e distanciamentos sociais. Cansaço, medo, irritabilidade, paciência e resiliência. São práticas e sentimentos que se tornaram palavras de ordem em nossas vidas cotidianas, modificando-as completamente. Como mensurar tais práticas e sentimentos? Como compreender a subjetividade de mulheres, mães e trabalhadoras em tempos difíceis de crise pandêmica? Com este ensaio sentimo-nos desafiadas a escrever sobre a maternidade em tempos de isolamento social, com alguns “beliscões” sociológicos, mas sem muita pretensão acadêmica. 

Nos últimos anos, observa-se que os homens têm se esforçado mais em direção a uma paternidade ativa e responsável. Acompanham suas parceiras no transcorrer de todo o pré-natal, participam do parto, “slingam” os seus bebês em momentos críticos do puerpério e parecem contribuir de maneira efetiva para uma divisão menos desigual do trabalho doméstico. Por outro lado, essa mudança comportamental parece ser muito circunscrita a uma fração da classe média e, mesmo entre esses homens, trata-se de uma demanda cultural ainda não muito próspera ou bem resolvida nas suas emoções e masculinidade.

Com o passar do tempo, falta a esses pais a iniciativa para as práticas de cuidado e as mulheres se veem na incumbência exaustiva do planejamento sem fim. Em outras palavras, os homens fazem, mas não por iniciativa própria, fazem porque as suas parceiras precisaram planejar cada detalhe, roteirizando diariamente a divisão dos cuidados com a casa e com os filhos. Em cada situação inusitada do cotidiano, lá está a mulher a pensar em soluções, alternativas ou novas formas de cuidado. Lá está a mulher pesquisando sobre desmame, desfralde, a creche mais próxima de casa, o tanto do salário que vai para a feira de orgânicos da semana, o que a criança precisa comer naquela faixa etária, terapias, qual o brinquedo educativo mais apropriado para a estimulação precoce, etc etc etc.

Somando-se às desigualdades vividas no âmbito privado, empresas, instituições de ensino e órgãos públicos continuam despreparados para receber as mulheres e suas crianças no ambiente de trabalho ou estudo. Estamos falando de mulheres trabalhadoras e assalariadas, que, além dos cuidados com a casa e com os filhos, precisam responder de modo “eficiente” às exigências do mercado de trabalho e da sua profissão. O resultado dessa demanda mental exaustiva é o adoecimento de muitas de nós. O cansaço é iminente e o corpo e as emoções acabam padecendo. Tal adoecimento alimenta a justificativa empresarial para a não contratação de mulheres ou para a suspensão do direito à licença maternidade.

Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), realizado em 2018, apontou que metade das mães que trabalham são demitidas até dois anos depois que acaba a licença maternidade, uma vez que “a mentalidade que ainda vigora é a de que o cuidado com os filhos é de exclusiva responsabilidade das mulheres”. Outra pesquisa mais recente, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e divulgada no final de abril, revela que a chegada de um filho pode impactar a vida das mulheres brasileiras em quase oito vezes mais do que a dos homens. O levantamento mostra que o percentual de pais que trabalham praticamente não se altera antes ou depois do nascimento de um filho, permanecendo próximo da taxa de 89%. Entre mulheres, porém, o número cai de 60,2% um ano antes da gravidez para 45,4% no primeiro semestre de vida da criança, chegando a 41,6% três trimestres depois.

Como mulheres acadêmicas, também sentimos na pele os impactos da desigualdade de gênero. Durante algum tempo, chamava-nos atenção o fato de muitas professoras optarem por não ter filhos, nutridas pelo receio de que a maternidade viesse a ser um obstáculo para o seu desenvolvimento profissional. O produtivismo acadêmico, que também não foge aos ditames da competitividade e individualidade inerentes ao modelo de produção capitalista, é vivido de forma completamente distinta por homens e mulheres que possuem filhos. Se fizermos a comparação da produção de artigos e trabalhos científicos de homens e mulheres que possuem filhos da mesma faixa etária a diferença é brutal. Já parou para perguntar a algum colega de profissão quem fica com os filhos enquanto ele escreve seus artigos e realiza suas pesquisas? Quem cuida da limpeza da casa? Estariam eles remunerando de forma razoável as trabalhadoras domésticas por tais serviços? Estariam os intelectuais brasileiros conciliando todas essas atividades rumo a uma paternidade responsável? Esperamos que sim. De qualquer forma, fica aqui a dica de um ótimo objeto de pesquisa para análises futuras.

Como bem nos lembra Silvia Federici (2019), a diferença em relação ao trabalho doméstico reside no fato de que ele não só tem sido imposto às mulheres como também foi transformado em atributo natural da psique e da personalidade feminina. (FEDERICI, 2019, p. 24). A naturalização do trabalho doméstico como uma construção cultural inerente ao cotidiano das mulheres, somada às imposições sociais experimentadas no tocante aos cuidados com os mais velhos e as crianças, ou seja, com a manutenção das relações familiares, tendem a representar um tipo de dominação que acentua-se não somente no plano das desigualdades econômicas, decorrentes da construção de papeis de gênero, mas também nas diferentes formas de produção de violências simbólicas.  

Desde os anos 1970, feministas negras como Angela Davis e Lélia Gonzalez  chamam atenção para a forma como patriarcado,  capitalismo e racismo se entrelaçam e se reforçam mutuamente, uma vez que o trabalho doméstico feminino não remunerado ou mal remunerado está na base desse modelo econômico, como uma espécie de “benfeitor” invisível. A situação é ainda mais grave nas sociedades com forte legado colonial e escravocrata.

Em tempos de Covid-19, torna-se ainda mais evidente a tradicionalíssima divisão do trabalho doméstico, que sobrecarrega as mulheres na sua jornada tripla diária. Diante da uberização das relações de trabalho, em que um contingente cada vez maior é arrastado para a servidão, com seus direitos trabalhistas completamente suprimidos, como tem sido vivido o isolamento social por mães trabalhadoras nas periferias e favelas? Boaventura de Sousa Santos (2020) chama atenção para os grupos que estão ao sul da quarentena.[3]

Os corpos racializados e generificados são aqueles que mais sentem os impactos da cruel pedagogia do coronavírus, sendo as mulheres um grupo social que vivencia de modo intenso o atual cenário global de pandemia. São elas consideradas as “cuidadoras do mundo”, as trabalhadoras informais e autônomas, as empregadas domésticas, aquelas que convivem com a violência dentro de casa, as enfermeiras que estão na linha de frente, as assistentes sociais. Podemos citar ainda as mulheres transgêneras, as idosas, as deficientes ou mães de deficientes, face a lógica reinante do capacitismo, e tantas outras que já vivem uma espécie de “quarentena original”.

O que dizer da medida tomada pela prefeitura de Belém, na última quarta-feira, 6 de maio, que incluiu a atividade de empregadas domésticas como essencial durante a pandemia? Decisão que demonstra o legado de quatro séculos de escravidão. Estarão as cidades europeias ou coreanas atribuindo ao trabalho das domésticas uma atividade essencial no auge da crise? O que dizer ainda do caso do menino  Miguel, de 5 anos, que teve a vida perdida, em 2 de junho,  ao cair do nono andar de um prédio por negligência da patroa de Mirtes, sua mãe e empregada doméstica, que trabalhava para a família do prefeito de Tamandaré, em Recife? Quais mães têm direito à proteção e à quarentena? Quem cuida dos filhos das trabalhadoras? Quais mães têm direito à proteção e à quarentena? Quem cuida dos filhos das cuidadoras?

Para manterem-se ativas e garantirem o mínimo para sobreviver à essa pandemia, muitas mulheres deixam os filhos com as suas avós, bisavós ou vizinhas mais próximas, revelando o papel e a importância da comunidade nos cuidados das crianças. Nesse sentido, a circulação de crianças entre uma casa e outra não é um comportamento excepcional e revela um ethos de solidariedade entre as mulheres mais pobres. Para as mulheres que cresceram nas periferias, a memória afetiva é permeada pelas lembranças do tempo passado com avós, tias avós ou vizinhas mais próximas, após o horário escolar. Isso porque o conceito nuclear de família ganha amplitude e riqueza de afetos. As rezas, o cuidado com as plantas e com o quintal, o conhecimento fitoterápico nutrido ali, a criatividade na cozinha com o pouco que se tem, são aspectos da sociabilidade nas periferias que as estatísticas nunca conseguirão alcançar.

Além disso, não podemos esquecer que as mulheres pobres, sobretudo as pretas em relacionamentos pautados no padrão heteronormativo, possuem suas biografias marcadas por laços conjugais precários ou a ausência completa de um companheiro que as auxilie na educação dos filhos e nos cuidados da casa. Como afirmou Sueli Carneiro, são mulheres que sempre trabalharam nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… “Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar!” (2001, p. 1).

Como afirmou a antropóloga Cláudia Fonseca (2018), para fins de comparação, a história do ocidente nos mostra quão difícil foi a implantação do modelo nuclear burguês entre grupos populares europeus. As medidas coercitivas de “enclausuramento” dos séculos XVIII e XIX visavam sanear a rua, retirando os mendigos, órfãos e prostitutas das vias públicas. Nesse sentido, para que o modelo nuclear burguês se consolidasse, Estado e empregadores precisaram se utilizar de táticas sedutoras, tais como salários mais dignos, escolarização universal com qualidade e uma melhoria nas condições de vida da classe operária (CARDOSO, 2018, p. 521). 

No Brasil do século XXI, as condições materiais de existência da classe trabalhadora parecem estar longe de encontrarem alguma dignidade. Na atual crise pandêmica, tais condições tornam-se ainda mais agudas. Pesquisas recentes realizadas pela prefeitura de Fortaleza já nos mostram que os pobres são os que mais morrem em decorrência de complicações com o coronavírus. A pesquisa divulgada pelo jornal Tribuna do Ceará, na tarde de ontem, dia 9 de maio, aponta que 89,5% das mortes por coronavírus na cidade foram de moradores de bairros com IDH baixo ou muito baixo. Isso corresponde a 604 das 675 vítimas cuja localização da residência foi identificada.

Lélia Gonzalez, em artigo intitulado “Por um feminismo afro-latino-americano” (1988), afirmou que era indispensável à luta feminista a inclusão das mulheres que se encontram na base e nas margens do sistema capitalista. São as mulheres indígenas, negras, quilombolas e periféricas, historicamente desumanizadas, que nos ajudarão a construir novas estratégias de luta contra as desigualdades e novos sentidos para o bem viver. 

Somos mães de duas meninas. Amamos nossas filhas e a potência da maternidade mobiliza as nossas ações e expande os nossos horizontes. Elas nos revolucionam internamente! Nos abre ao novo! Nossas filhas nos trazem a alegria e a esperança de que dias melhores virão. Porém, faz-se necessário denunciar como as desigualdades de gênero acabam alimentando e reforçando as desigualdades de raça e de classe de forma ainda mais exacerbada em tempos de pandemia.  O machismo, que tantas de nós acreditamos estar enfraquecido, segue o seu curso de forma ainda mais astuta. É preciso manter-se atenta e forte! É preciso saber lutar como uma mãe!

Referências Bibliográficas:

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: Seminário Internacional sobre Racismo, Xenofobia e Gênero. Durban, 2001. 

CARDOSO, Cláudia. “Ser mulher, mãe e pobre”. In: História das mulheres no Brasil. São Paulo, Editora Contexto, 2018. 

DAVIS, Angela. Mulheres, classe e raça. São Paulo, Boitempo, 2016. 

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da Revolução. Trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Editora Elefante, 2019. 

GONZALEZ, Lelia. Por um feminismo afro-latino-americano. Revista Isis Internacional, Santiago, v. 9, 1988. 

SANTOS, Boaventura. A cruel pedagogia do vírus, Coimbra, Editora Almendina, 2020. 

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/05/12/internas_economia,754492/metade-das-mulheres-gravidas-sao-demitidas-na-volta-da-licenca-materni.shtml.

https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/05/09/filho-impacta-8-vezes-mais-a-vida-profissional-de-mulheres-do-que-de-homens.htm.

https://www.facebook.com/tribunadoceara/photos/a.417554675005400/2987882497972592/?type=3

[1] Professora do Curso de Ciências Sociais da UECE.

[2] Professora do Curso de Sociologia da UNILAB.

Ambas coordenam o Grupo de Pesquisa e Extensão sobre Relações Étnico-Raciais, Gênero e Educação (GERE/UECE/UNILAB)

[3]O Sul é designado por Boaventura como um espaço-tempo político, social e cultural.


MINICURRÍCULOS

Maria Alda de Sousa Alves, mãe da Ayra e cientista social.

Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado e doutorado em Sociologia pela mesma instituição. Participou do Laboratório das Artes e das Juventudes (LAJUS/UFC) entre 2013-2017. É professora Adjunta II do curso de Licenciatura em Sociologia da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro Brasileira (UNILAB), ministrando as disciplinas de Sociologia da Educação e Prática de Ensino. Coordena, juntamente com a Profª Michely Peres de Andrade, o Grupo de Pesquisa e Extensão sobre Relações Étnico-Raciais, Gênero e Educação (GERE- UNILAB/UECE), atuando nas seguintes linhas: Culturas escolares, juventudes e ensino médio; Educação e relações étnico-raciais; Educação inclusiva, valorização das diferenças e políticas públicas. É Associada a Rede de Pesquisadores e Pesquisadoras da Juventude Brasileira (Rede JUBRA). Colaboradora do Laboratório de Ensino e Práticas Sociais (LAPRÁTICAS/UECE).

Michely Peres de Andrade, Cientista Social, Yogini e mãe da Isa.

Possui mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde desenvolveu trabalhos vinculados à linha de pesquisa Cultura Política, Identidades Coletivas e Representações Sociais. É professora Adjunta do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e pesquisadora do Laboratório de Ensino e Práticas Sociais (LAPRATICAS), responsável pela linha de pesquisa “Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais”. Atualmente é coordenadora de área do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e coordena, em parceria com a professora Maria Alda de Sousa Alves, o Grupo de Pesquisa e Extensão sobre Relações Étnico-Raciais, Gênero e Educação (GERE – UNILAB/UECE). Tem interesse nas seguintes áreas: Sociologia da cultura; Sociologia da educação; Educação para as relações étnico-raciais; Yoga e educação.




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